Judicialização excessiva no Brasil: pequenos passos no combate a um grande inimigo

Recente alteração no CPC ainda está longe de resolver problema da advocacia predatória no setor aéreo.

A Lei 14.879, publicada em 4 de junho de 2024, alterou o artigo 63, § 1º e § 5º, do Código de Processo Civil[1], para determinar que:

  1. a eleição de foro deve ser feita por escrito e deve ter relação com o domicílio ou residência de uma das partes, ou onde for cumprida a obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, que deve ser sempre mais favorável ao consumidor;
  2. o ajuizamento de ação em juízo aleatório, sem pertinência com o domicílio ou residência das partes, ou com o negócio jurídico pactuado, constitui prática abusiva que deve gerar a declinação do juízo de ofício.

Apesar da iniciativa ser muito bem-vinda, ao nosso ver, esses são pequenos passos no combate à judicialização excessiva no Brasil.

No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou, em 28 de maio de 2024, que atualmente há quase 84 milhões de ações em curso na Justiça para 18 mil juízes. É um índice de judicialização que não para de crescer – de 2023 para 2024 foram 35 milhões de novos casos, um crescimento de 9,5%.

No setor aéreo, a realidade brasileira não é diferente.

O Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (IBAER) apurou que 98,5% das ações cíveis no mundo contra as companhias aéreas estão concentradas no Brasil. Isso é o que consta expressamente da Cartilha do Transporte Aéreo, publicada em 25 de maio de 2021, pelo CNJ.

Em dezembro de 2023, o próprio CNJ, através do Centro de Pesquisas Judiciais da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), em conjunto com as Associações do transporte aéreo (ALTA, Abear e Jurcaib), firmaram acordo com a Universidade de Brasília para a realização de um estudo sobre a judicialização no setor, que deve ser concluído em dezembro de 2024.

Ao comentar o excesso de ações de passageiros no Brasil, Franciely Chropacz, Introdução ao Direito Aeronáutico, explicou que:

“Essa realidade se constituiu, em parte, pelo grande número de aplicativos e sites que oferecem serviços de ‘processar companhia aérea’. Páginas da internet oferecem serviços de indenizações em caso de voos cancelados, malas extraviadas e vários deles compram o ‘direito’ de indenização do passageiro em troca de valor pré-fixado. Em decorrência dessa situação, a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear) está prevendo oneração do setor aéreo (Gazeta do Povo, 2020), e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) procedeu à verificação de atuação de advogados em desacordo com o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906, de 1994) (Conjur, 2019) e da prática do exercício ilegal da advocacia”.

Sobre a advocacia predatória no setor aéreo, que na aviação se popularizou com a denominação de “abutres”, é interessante expor o seguinte.

Os “abutres” criam páginas e perfis na internet (sites ou aplicativos, brasileiros ou estrangeiros) oferecendo indenizações automáticas e assessoria jurídica para o ajuizamento de demandas contra as empresas aéreas. Vejamos por exemplo uma simples busca do Google com “indenização atraso de voo”. Os primeiros três resultados já trazem empresas e escritórios que oferecem uma compensação imediata para os passageiros prejudicados, com valores de até R$ 10 mil.

Essa compensação, no geral, é paga ao passageiro antecipadamente, sendo que o passageiro firma termos de sub-rogação, quitação, contratos de honorários, procurações, cartas de preposto, declarações de pobreza (para obtenção de Justiça gratuita), sendo que, após isso, o passageiro raramente sabe do desfecho do processo judicial que será ajuizado em seu nome.

Outro expediente muito utilizado pelos “abutres” é o ajuizamento das ações em juízos aleatórios, mas escolhidos para serem distribuídos onde os juízes são reconhecidamente favoráveis à proteção do consumidor em quaisquer situações (o que se denomina Forum Shopping), com petições padronizadas e, no geral, apenas por indenizações por danos morais presumidas.

Nesse ponto, entendemos que a Lei 14.879/2024, ao alterar o art. 63, para inclusão do § 5º, do Código de Processo Civil (CPC), no que diz respeito ao ajuizamento de ações em juízo aleatório dá passos certeiros no combate ao excesso de judicialização e ao Forum Shopping, na qualidade de expedientes dos chamados “abutres”. Contudo, isoladamente, a referida alteração no CPC está longe de resolver o problema.

  • Código de Processo Civil, com a nova redação dada pela Lei 14.879: “ 63. As partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações.
  •  1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.
  •  5º O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício.”
  •  Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça em: https://www.cnj.jus.br/justica- em-numeros-2024-barroso-destaca-aumento-de-95-em-novos-processos/.
  • Para Cartilha do Transporte Aéreo do Conselho Nacional de Justiça, acesse:
  • https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/05/cartilha-transporte-aereo-CNJ_2021- 05-20_V10.pdf

Valéria Curi A. S. Starling | Sócia de Di Ciero Advogados