Empresas aéreas estrangeiras e a Reforma Tributária: O que muda no cenário brasileiro?

AS EMPRESAS AÉREAS ESTRANGEIRAS E A REFORMA TRIBUTÁRIA:

O QUE MUDA NO CENÁRIO BRASILEIRO?

A Reforma Tributária representa uma ampla e profunda transformação no sistema de tributação sobre o consumo no Brasil. Cinco tributos atualmente em vigor (PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS) serão extintos e substituídos por dois novos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Juntos, esses tributos comporão o chamado IVA brasileiro, alinhando o país à tendência internacional de adoção de um modelo único e não cumulativo de tributação sobre o valor agregado de bens e serviços.

Entretanto, um ponto inédito da nova sistemática — e que, a nosso ver, representa um equívoco por parte do Governo brasileiro — é a previsão de tributação do serviço de transporte aéreo internacional prestado por empresas estrangeiras no Brasil.

Neste estudo, propomos uma análise estruturada em quatro etapas:

(1) as novas regras de incidência tributária sobre o transporte aéreo internacional;

(2) uma retrospectiva das isenções tributárias atualmente aplicáveis ao setor aéreo;

(3) a abordagem conferida aos acordos internacionais no texto da Reforma Tributária;

(4) uma reflexão crítica sobre a nova sistemática de tributação, com a apresentação de possíveis soluções para mitigar seus impactos sobre o setor aéreo internacional.

(1) As novas regras de incidência tributária sobre o transporte aéreo internacional

A Lei Complementar nº 214/2025 estabelece que a CBS e o IBS incidirão sobre o serviço de transporte aéreo internacional nas seguintes situações:

  • Transporte de carga: a incidência ocorrerá somente ao final do transporte, quando a carga proveniente do exterior chegar ao aeroporto de destino no Brasil.
  • Transporte de passageiros: a incidência ocorrerá somente no início do transporte, quando o passageiro embarcar no Brasil com destino ao exterior.

Embora a regra geral estabeleça que o imposto seja devido no momento da prestação do serviço de transporte, a Lei Complementar determina que a companhia aérea antecipe o pagamento do IBS e da CBS assim que receber os valores correspondentes ao serviço.

Ou seja, quando o cliente realiza o pagamento antecipado — integral ou parcial — antes da execução do serviço, a companhia aérea já deve recolher a parcela proporcional dos tributos naquele momento, ainda que o transporte não tenha sido efetivamente prestado.

Exemplo prático:

Em 01/01/2027, uma companhia aérea vende uma passagem por R$ 10.000,00. Embora o valor tenha sido pago integralmente no ato da compra, o passageiro somente viajará em 01/05/2027 — data que, em regra, marcaria a prestação do serviço de transporte.

Como se dará o pagamento do IVA nesse caso?

1. Na data do pagamento antecipado (01/01/2027):

  • A empresa recolhe uma antecipação do IBS e da CBS, calculada sobre os R$ 10.000,00 pagos;
  • As alíquotas aplicáveis são aquelas vigentes na data do pagamento;
  • O valor recolhido é lançado como débito na apuração do imposto, funcionando como um pagamento adiantado da obrigação tributária.

2. Na data da prestação do serviço (01/05/2027):

  • A empresa apura o valor definitivo dos tributos, com base nos mesmos R$ 10.000,00;
  • As alíquotas aplicadas serão aquelas vigentes na data do fornecimento do serviço;
  • O valor já antecipado é comparado com o imposto devido:
  • Se o valor antecipado for inferior ao devido, a empresa recolhe a diferença;
  • Se for superior, a diferença será creditada na apuração subsequente.

E se a venda for cancelada (distrato)?

Se o fornecimento não acontecer, por qualquer motivo (ex: cancelamento do contrato), e a empresa devolver o valor recebido, então ela poderá se creditar do imposto que pagou antecipadamente — ou seja, recupera os tributos pagos sobre as parcelas devolvidas.

Em resumo:

  • Pagamento antecipado → tributo antecipado.
  • Na data do transporte → cálculo final e ajuste (complementa ou credita).
  • Cancelamento → pode recuperar o que pagou.

E como ficam as alíquotas?

O Senado Federal definirá as alíquotas de referência tanto da CBS quanto do IBS. Porém, no caso do IBS, estados e municípios podem optar por adotar alíquotas diferentes das alíquotas de referência definidas pelo Senado Federal.

Como será feito então o cálculo da alíquota do IBS?

A alíquota aplicável do IBS dependerá do local em que o serviço for prestado. Para determinar qual alíquota será aplicada e qual ente federativo receberá a receita, é essencial definir o local de ocorrência do fato gerador do tributo. No caso de transporte aéreo, o local será o seguinte:

  • Transporte de cargas: estado e município de destino da carga.
  • Transporte de passageiros: estado e município do início do transporte. ​

Exemplo prático – Cálculo da alíquota do IBS no transporte aéreo

Atenção: As alíquotas aqui utilizadas são meramente ilustrativas, uma vez que os percentuais ainda serão definidos pelos entes federativos.

Cenário 1 – Transporte de carga

  • Origem do voo: Miami (EUA)
  • Destino da carga: Aeroporto de Viracopos – Campinas/SP
  • Valor cobrado pelo transporte (importação): R$ 10.000,00
  • Alíquota do IBS de SP (estado): 12%
  • Alíquota do IBS de Campinas (município): 6%
  • Alíquota total do IBS aplicável: 18%

Cálculo do IBS:

IBS devido = R$ 10.000,00 × 18% = R$ 1.800,00

Cenário 2 – Transporte de passageiros

  • Origem do voo: São Paulo (SP) – Aeroporto de Guarulhos
  • Destino do passageiro: Lisboa (Portugal)
  • Valor da passagem: R$ 10.000,00
  • Alíquota do IBS de SP (estado): 12%
  • Alíquota do IBS de Guarulhos (município): 5%
  • Alíquota total do IBS aplicável: 17%

Cálculo do IBS:

IBS devido = R$ 10.000,00 × 17% = R$ 1.700,00

Conclusão

A alíquota do IBS é composta pela soma da alíquota estadual e municipal do local onde ocorre o fato gerador (definido pela natureza do transporte).

Qual será a base de cálculo do tributo?

A base de cálculo será o valor integral cobrado pela companhia aérea para prestação do serviço de transporte, incluindo, por exemplo, multas, descontos concedidos sob condição, seguro cobrado como parte do valor da operação, acréscimos decorrentes de ajuste do valor da operação, entre outros. Cabe lembrar que, no transporte internacional de passageiros, a base de cálculo será a metade do valor cobrado se os trechos de ida e volta forem vendidos em conjunto.

Outras considerações importantes:

  •  Serviço de transporte de carga exportação: não incide IBS e CBS.
  • Serviço de transporte de passageiro do exterior para o Brasil: não incide IBS e CBS.
  • Bens materiais destinados a uso e consumo de bordo: suspensão do IBS e da CBS.
  • Combustível para aeronave em tráfego internacional: não incide IBS e CBS.
  • Partes e peças em Depósito Afiançado (DAF): suspensão do IBS e da CBS, mediante regulamento que discriminará as espécies de regimes aduaneiros especiais de depósito.
  • Regime de Trânsito Aduaneiro: suspensão do IBS e da CBS.
  • Não cumulatividade: as empresas podem abater os tributos pagos em etapas anteriores, mas o serviço de transporte aéreo prestado por companhias aéreas estrangeiras tem uma cadeia de fornecimento curta, com poucas aquisições de insumos tributados.

Concluída a análise da incidência do IBS e da CBS sobre o serviço de transporte aéreo no contexto da reforma tributária, passa-se ao exame do histórico de isenções concedidas às empresas estrangeiras em relação aos tributos que estão sendo extintos (PIS, COFINS e ICMS) — isenções essas que não encontram correspondência no novo modelo tributário.

Compreender a origem dessas isenções pode ajudar a delinear os caminhos possíveis para a construção de uma solução adequada à nova tributação aplicável às empresas estrangeiras de transporte aéreo.

(2) Retrospectiva das isenções tributárias atualmente aplicáveis ao setor aéreo

​No contexto do transporte aéreo internacional, é prática consolidada que os lucros obtidos por empresas estrangeiras sejam tributados exclusivamente no país onde se encontra a sede de direção efetiva da empresa. Essa abordagem visa evitar a dupla tributação, promovendo um ambiente fiscal mais justo e previsível para as companhias aéreas que operam em diferentes países.

Atualmente, as receitas obtidas pelas empresas aéreas estrangeiras estarão isentas do IRPJ, da CSLL, do PIS e da COFINS desde que: (i) exista reciprocidade de tratamento às empresas aéreas brasileira no país de bandeira da referida empresa estrangeira; e (ii) estas receitas se encontrem diretamente atreladas à atividade de transporte aéreo internacional.

Contudo, o cenário nem sempre foi esse.

No passado, as empresas aéreas estrangeiras foram alvo de autuações fiscais para a cobrança da CSLL, do PIS e da COFINS. A Receita Federal fundamentava tais exigências no argumento de que os tratados internacionais garantiriam isenção apenas quanto ao Imposto de Renda, cuja natureza jurídica seria distinta das contribuições sociais — ainda que estas, ao final, também incidam sobre a renda auferida pelas referidas empresas.

Após longas negociações com o Governo, a Medida Provisória nº 2.158-35/2001 concedeu isenção do PIS e da COFINS sobre as receitas do transporte aéreo internacional de cargas e passageiros — isenção essa que está sendo revogada pela reforma tributária. Diante do passivo acumulado no período anterior à isenção, o Governo editou a MP nº 67/2002 (convertida na Lei nº 10.560/2002), que perdoou os débitos milionários das companhias aéreas, desde que celebrado acordo de reciprocidade de tratamento entre o Brasil e o país de bandeira da empresa aérea estrangeira.

Contudo, essa alteração revelou-se insuficiente. A Receita Federal passou a exigir que a reciprocidade de tratamento fosse comprovada por meio de acordo internacional formal, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da República — exigência que, aliás, também se reflete no atual texto da reforma tributária, como será analisado em tópico próprio. Na prática, tal requisito inviabilizou a concessão da remissão às empresas aéreas estrangeiras, diante das dificuldades inerentes à celebração e à tramitação de acordos internacionais formais.

Diante desse impasse e da necessidade de viabilizar a efetiva aplicação da remissão, após mais de dois anos de tratativas com o Governo, foi publicada a Lei nº 11.051, de 2004, que alterou a redação da Lei nº 10.560, de 2002, para estabelecer que se considera acordo qualquer forma de ajuste celebrado entre os países interessados. Apenas a partir dessa flexibilização as empresas aéreas estrangeiras puderam, de fato, usufruir do perdão de suas dívidas de PIS e COFINS.

O mesmo ocorreu com a CSLL, cuja cobrança também foi direcionada às empresas aéreas estrangeiras pelas mesmas justificativas aplicadas ao PIS e à COFINS. Em 2015, a Lei nº 13.202 solucionou a questão ao estabelecer que os acordos e convenções internacionais firmados pelo Brasil para evitar a dupla tributação da renda também se aplicam à CSLL, inclusive quando realizados por meio de ajustes simplificados com base na reciprocidade de tratamento.

No que se refere ao ICMS, o imposto deixou de ser exigido com base na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1600. Nessa oportunidade, o STF declarou inconstitucional a cobrança de ICMS sobre passagens aéreas e sobre o transporte aéreo internacional de cargas. O fundamento central foi o de que a Lei Complementar nº 87/1996 instituiu a cobrança sem observar a exigência constitucional de regulamentação específica para os serviços de transporte aéreo, prevista no art. 155, § 2º, inciso XII, da Constituição Federal.

Em síntese, o tratamento tributário conferido às empresas aéreas estrangeiras no Brasil evoluiu significativamente ao longo dos anos, passando de um cenário de insegurança jurídica e autuações fiscais para um modelo mais alinhado aos padrões internacionais de tributação, pautado na reciprocidade de tratamento e na busca por neutralidade fiscal.

Todavia, o texto atual da reforma tributária representa, de fato, a perda dos avanços conquistados ao longo dos últimos anos, reinstaurando um cenário de insegurança jurídica para o setor aéreo, conforme será detalhado a seguir.

(3) A abordagem conferida aos acordos internacionais no texto da Reforma Tributária

A Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, dedica um capítulo específico às operações submetidas a tratados internacionais, conforme autorização conferida pela Emenda Constitucional nº 132/2023.

Não obstante o histórico anteriormente analisado — no qual o Governo permitiu a concessão de isenções às empresas estrangeiras com base em qualquer forma de ajuste firmado entre os países interessados —, a Lei Complementar nº 214/2025 adotou uma postura mais restritiva.

De acordo com o art. 297, somente as operações previstas em tratados internacionais celebrados pela União e referendados pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 84, inciso VIII, da Constituição Federal, poderão ser enquadradas em regime específico de incidência do IBS e da CBS. Na sequência, o art. 299 dispõe que “a aplicação das normas referentes ao IBS e à CBS previstas em tratado internalizado (…) e os vigentes na data de publicação desta Lei Complementar, será regulamentada por ato conjunto do Ministro de Estado da Fazenda e do Comitê Gestor do IBS, ouvido o Ministério das Relações Exteriores”.

Os dois dispositivos não nos parecem contraditórios, mas sim complementares, compondo um sistema articulado: o art. 297 estabelece a exigência de que o tratado internacional seja formalmente celebrado e referendado, enquanto o art. 299 trata da regulamentação da aplicação prática desses tratados já internalizados, ou seja, da forma como suas disposições incidirão sobre o IBS e a CBS.

Essa distinção entre acordo formal e acordo simplificado, na prática, pode causar um tratamento diferenciado entre as empresas aéreas. Por isso, é imprescindível uma análise específica da situação de cada empresa, uma vez que os efeitos da reforma podem variar conforme o país de origem da companhia e a existência — ou não — de tratado internalizado no Brasil.

(4) uma reflexão crítica sobre a nova sistemática de tributação para o setor aéreo internacional

A reforma tributária, embora busque modernizar o sistema de tributação do consumo no Brasil, introduz inseguranças relevantes para as empresas aéreas estrangeiras. Ao condicionar a concessão de regime específico à existência de tratados internacionais formalmente celebrados e referendados pelo Congresso Nacional, a nova legislação desconsidera avanços já consolidados, como o reconhecimento de instrumentos mais simples — a exemplo da troca de notas e memorandos de entendimento — firmados com base na reciprocidade de tratamento.

Para mitigar os impactos negativos e restaurar a segurança jurídica desse setor, três caminhos se mostram possíveis:

Alteração legislativa específica:

A inclusão, na Lei Complementar nº 214/2025, da autorização de acordos simplificados para o setor aéreo internacional — inclusive ajustes administrativos ou memorandos de entendimento — como instrumentos válidos para a concessão de regimes específicos de incidência do IBS e da CBS. Essa proposta, contudo, enfrenta um obstáculo relevante: a necessidade de compensação da renúncia fiscal. Nos termos dos arts. 18 a 20 da própria Lei Complementar nº 214/2025, toda redução de arrecadação deverá ser neutralizada por meio de ajuste nas alíquotas de referência aplicáveis a todos os contribuintes, e só poderá produzir efeitos após essa compensação estar efetivamente implementada. Trata-se de um entrave técnico e político que exigirá amplo diálogo federativo.

Atuação diplomática coordenada:

Outra medida viável seria iniciar tratativas com o Ministério das Relações Exteriores com o objetivo de formalizar, por meio de instrumentos jurídicos adequados, os acordos de reciprocidade já existentes. Isso viabilizaria sua internalização nos moldes exigidos pelo art. 297 da Lei Complementar nº 214/2025, possibilitando a concessão de regime específico sem necessidade de alteração legal.

Judicialização da questão:

Por fim, há espaço para discutir judicialmente a interpretação do art. 178 da Constituição Federal, que reconhece o princípio da reciprocidade de tratamento. Sob essa ótica, seria possível sustentar que o reconhecimento da reciprocidade, nos termos já praticados, não depende de tratado formal. Todavia, essa tese encontra obstáculo na exigência do art. 49, I, da Constituição Federal, que determina a submissão à aprovação do Congresso Nacional de todo acordo que implique renúncia fiscal — o que torna o êxito dessa via mais incerto.

Diante desse cenário, é urgente a articulação entre as empresas estrangeiras, o Poder Executivo e o Congresso Nacional para assegurar que a reforma tributária não retroceda e não inviabilize a operação das empresas aéreas estrangeiras no país. A modernização do sistema tributário deve caminhar lado a lado com a segurança jurídica e com a preservação dos compromissos internacionais firmados pelo Brasil.

Por fim, é importante reforçar que nem todas as empresas estrangeiras se encontram na mesma condição. Aquelas cujos países de bandeira já firmaram tratados formalmente celebrados e devidamente internalizados pelo Brasil poderão, eventualmente, ser beneficiadas por um tratamento diferenciado, conforme regulamentação a ser expedida por ato conjunto do Ministro da Fazenda e do Comitê Gestor do IBS, com a oitiva do Ministério das Relações Exteriores, nos termos do art. 299 da Lei Complementar nº 214/2025.

O Di Ciero Advogados permanece inteiramente à disposição para aprofundar qualquer uma das questões abordadas neste estudo e, em especial, para avaliar a situação específica de cada empresa aérea diante do novo cenário tributário.

Vanessa Ferraz – Sócia da Di Ciero Advogados