Nova estrutura, velhos problemas no transporte de cargas: a dinâmica da inidoneidade fiscal no IBS e na CBS
A implementação do IVA Dual, por meio do IBS e da CBS, está longe de ser uma solução universal para os problemas do sistema tributário brasileiro. Embora a proposta vise simplificar a estrutura fiscal e reduzir a guerra fiscal entre os estados, a falta de definições claras e regulamentações específicas pode, paradoxalmente, perpetuar ou até intensificar esses problemas.
A responsabilidade solidária no transporte de mercadorias com documentos fiscais inidôneos ou sem documentos fiscais, sem dúvidas pode deixar de ser um problema atrelado, quase que exclusivamente, ao ICMS e contaminar o IBS e a CBS, caso a legislação não seja aprimorada.
Atualmente, tanto a Lei Kandir, que regula o ICMS, quanto o Projeto de Lei Complementar 68/2024 omitem uma definição precisa do que constitui a inidoneidade de um documento fiscal e como ela poderia ser afastada. Essa lacuna legal delega aos estados a responsabilidade de determinar as condições sob as quais um documento é considerado inidôneo, perpetuando a discrepância na aplicação da lei e alimentando a guerra fiscal.
Veja que encontrar uma mercadoria sendo transportada, ou armazenada, acompanhada de uma documentação fiscal considerada inidônea ou desacompanhada de documento fiscal pode ser o mesmo que encontrar um pote de ouro, a depender do estado felizardo, visto que as normas atuais preveem uma presunção de ocorrência do fato gerador.
Por exemplo, considere uma transação de compra e venda entre contribuintes dos estados X e Y, com a mercadoria sendo transportada através do estado Z. Se o estado Z determina que a documentação é inidônea — talvez por uma interpretação divergente ou mais rigorosa das regras fiscais —, pode apreender a carga e responsabilizar a transportadora pelo pagamento do tributo, afirmando uma competência tributária e atraindo para si uma arrecadação que, de outra forma, não teria.
Ao analisar a legislação sob a ótica de operações simuladas e fraudulentas, é fácil entender o objetivo da norma, uma vez que o legislador buscou, através da inclusão dessa cláusula legal, dar meios aos protetores do erário para identificar e cobrar os tributos que seriam devidos nessas operações.
Contudo, a maioria dos casos ocorrem por erros operacionais, seja da transportadora ou contribuintes, ou as transportadoras são igualmente lesadas por terceiros mal intencionados.
Atualmente, cada Estado possui a sua própria legislação definindo as causas que podem gerar a inidoneidade de documentos fiscais, além de procedimentos fiscalizatórios próprios. Porém, considerando a dinâmica do transporte de cargas, quase sempre as fiscalizações e autuações são realizadas por operações volantes, em barreiras fiscais ou postos fiscais, o que resulta em uma instrução precária e com preterição do direito de defesa das transportadoras.
Basicamente, os procedimentos de fiscalização/autuação ocorrem sem:
i) Que seja dada a oportunidade para a transportadora comprovar eventual erro operacional;
ii) Intimar o remetente e o destinatário para esclarecer os detalhes da operação;
iii) Incluir os contribuintes originários (remetente e destinatário) no polo passivo das autuações; e,
iv) A busca pela verdade material dos fatos.
Com isso, fica praticamente impossível comprovar qualquer erro operacional na fase que antecipa a lavratura do auto de infração e, ao longo do contencioso administrativo, a transportadora fica a mercê de entendimentos que muitas vezes são excessivamente restritos à lei, que na maioria dos estados é inadequadamente rigorosa e sem margem para erro.
Poucos são os estados que, por exemplo, inserem uma regra como o Estado de Goiás fez ao editar o art. 68 do Código Tributário Estadual:
Art. 68. A inidoneidade de que trata o artigo anterior poderá ser afastada, mediante processo administrativo tributário, em que o sujeito passivo comprove, de forma inequívoca, que a irregularidade não importou em falta de pagamento, total ou parcial do imposto.
Tal medida possibilita que o julgador administrativo tenha um olhar do real objetivo da norma. Não por acaso, o Estado de Goiás possui, disparado, o contencioso administrativo que mais requer a realização de diligências para verificar se houve o recolhimento do tributo da operação, determinando o exame de livros fiscais do remetente e destinatário, além de outras diligências que conservam o direito de defesa da transportadora, indevidamente incluída isoladamente no polo passivo da autuação.
Trata-se, na verdade, de questão lógica, visto que a responsabilidade tributária pressupõe a existência de uma operação originária. Desse modo, qualquer presunção de ocorrência do fato gerador é relativa e pode ser afastada. Na prática, essa tarefa é jogada para o particular e muito pouco se exige daquele que tem a função de fiscalizar a ocorrência do fato gerador.
O Distrito Federal, praticamente vizinho ao Estado de Goiás, possui uma jurisprudência administrativa excessivamente legalista, que se nega até mesmo a levar em consideração documentos fiscais posteriormente apresentados pela transportadora, que apenas fez a troca indevida da documentação ao etiquetar a carga ou teve o documento extraviado no curso do transporte por questões diversas (vide situação fática do Recurso Voluntário 256/2022 julgado pela 2ª Câmara do TARF[1]).
Infelizmente, o rigor do Distrito Federal costuma ser a prática nos demais estados, que não incentivam a busca pela verdade material dos fatos em situações que claramente podem ser erros operacionais, bem como não cobram a instrução probatória mínima que deveria existir em autuações dessa natureza, inclusive com prova de que houve a tentativa de intimação do remetente e destinatário indicados nos documentos fiscais, reais contribuintes.
Esse tipo de cenário não só complica a jurisprudência e a prática tributária, mas também coloca em risco a promessa de redução dos conflitos fiscais. Ademais, confiar que os entes federativos regulamentem de maneira uniforme essas questões sem uma diretriz federal clara é otimista e potencialmente problemático.
Em um cenário de IBS, que terá uma gestão compartilhada entre estados e municípios, CBS, que será gerido para a união, e contenciosos administrativos e judiciais sem competência definida, é inteligente ter regras tão abertas?
Na conferência realizada pelo governo para a apresentação do PLP 68/2024, Bernard Appy demonstrou otimismo em ter regras uniformes e uma única jurisprudência para o IBS e o CBS, mas isso não será alcançado com uma regulamentação que fusiona e importa problemas dos tributos que serão extintos.
Douglas S. Ayres Domingues | Advogado de Di Ciero Advogados