O que o caso CVC nos diz sobre fato notório, limites do dever de informação das companhias aéreas e o papel do consumidor
Não há dúvidas de que todos os prestadores de serviços têm o dever de informar com clareza todos os termos e condições aos potenciais consumidores, para que eles possam ter ciência do que estão contratando. Evidentemente que as companhias aéreas, como prestadoras do serviço de transporte aéreo, devem prestar informações claras e precisas sobre o que estão oferecendo. Mas será que há limites para esse dever de informar? Há responsabilidade da empresa quando se tratar de fato notório?
O direito à informação está presente no Código de Defesa do Consumidor, sendo um dos direitos básicos do consumidor:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(…)
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
A mesma lei estabelece quais informações devem ser disponibilizadas no momento da oferta de um produto e serviço, bem como sua forma de divulgação:
Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
Além disso, a Resolução 400 da ANAC, que dispõe sobre as Condições Gerais de Transporte Aéreo, também deixa clara a obrigação do transportador aéreo de prestar todas as informações, de maneira acessível e de fácil entendimento, sobre o serviço ofertado:
Art. 2º Na oferta dos serviços de transporte aéreo, o transportador poderá determinar o preço a ser pago por seus serviços, bem como suas regras aplicáveis, nos termos da regulamentação expedida pela ANAC.
Parágrafo único. O transportador deverá disponibilizar nos locais de vendas de passagens aéreas, sejam eles físicos ou eletrônicos, informações claras sobre todos os seus serviços oferecidos e as respectivas regras aplicáveis, de forma a permitir imediata e fácil compreensão.
Entretanto, não se pode imputar ao fornecedor de um serviço a obrigação de auxiliar na tomada de decisão de contratar um serviço, ou de se responsabilizar por cumprir com requisitos e deveres que seriam da parte contratante. Um bom exemplo é a questão da documentação e visto para realizar viagens internacionais. Até hoje, não é incomum que as companhias aéreas sejam processadas por não informar a um passageiro que era necessário possuir visto válido para ingressar em país estrangeiro, ou a respeito de outras exigências como vacinas, etc. Contudo, trata-se de fato notório a necessidade de possuir visto para entrada no país referido, bastando uma simples busca na internet para obter essa informação.
De qualquer forma, não há fundamentação lógica, tampouco jurídica, para responsabilizar o transportador aéreo por uma tarefa que deveria ter sido executada pelo passageiro, afinal a companhia aérea só vende bilhetes aéreos, e eventualmente serviços acessórios a ele, mas não presta assessoria sobre os demais aspectos relacionados à viagem. Neste sentido, a Resolução 400 também estabelece ser obrigação do passageiro possuir toda a documentação necessária para que o passageiro possa realizar sua viagem, incluindo vistos e vacinas[1].
Essa semana foi publicada uma notícia que impactou todo o setor de aviação e turismo, pois a CVC recebeu uma multa de quase R$ 400.000,00 (https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/08/02/cvc-e-multada-em-r-363-mil-por-vender-passagens-aereas-da-avianca-em-2020.htm?cmpid) por ter vendido passagens aéreas da Avianca quando referida companhia aérea já se encontrava em Recuperação Judicial.
Vale destacar o argumento da SENACON, que considerou ter havido violação ao Código de Defesa do Consumidor pela agência de viagens, ao não informar aos consumidores sobre possíveis riscos de restrições nas atividades da companhia aérea que enfrentava o processo de recuperação judicial. Ainda que o dever de informar seja em caráter amplo, não se pode imputar à empresa diversa daquela que estava envolvida no processo análise de riscos, pois, além de não ser razoável, levaria a agência ao descumprimento contratual do compromisso com a empresa aérea.
O entendimento do STJ sobre a informação ao consumidor é de que o fornecedor deve informar os riscos do serviço contratado, mas deve ser respeitada a autonomia da vontade do consumidor e sua liberdade de contratar e, consequentemente, tomar decisões:
RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO POR INADIMPLEMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO. NECESSIDADE DE ESPECIALIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO E DE CONSENTIMENTO ESPECÍFICO. OFENSA AO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO. VALORIZAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO. DANO EXTRAPATRIMONIAL CONFIGURADO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. BOA-FÉ OBJETIVA. ÔNUS DA PROVA DO MÉDICO.
(…)
3. O dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetá-lo psicologicamente, ocasião em que a comunicação será feita a seu representante legal.
4. O princípio da autonomia da vontade, ou autodeterminação, com base constitucional e previsão em diversos documentos internacionais, é fonte do dever de informação e do correlato direito ao consentimento livre e informado do paciente e preconiza a valorização do sujeito de direito por trás do paciente, enfatizando a sua capacidade de se autogovernar, defazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações.
5. Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado.
6. O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se. A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar os riscos e vantagens de determinado tratamento, que, ao final, lhe causou danos, que poderiam não ter sido causados, caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente.
(…)
10. Recurso especial provido, para reconhecer o dano extrapatrimonial causado pelo inadimplemento do dever de informação. (REsp 1.540.580 – DF (2015/0155174-9), Min. Rel. Lázaro Guimarães, DJE 02/08/2018).
Fazendo ainda um paralelo com uma indústria que comercializa produtos que causam malefícios à saúde, que é a tabagista, por tratar-se de fato notório, não há que se falar em desconhecimento por não ter a empresa que produz o cigarro fornecido tal informação, conforme se nota nos trechos abaixo, extraídos do parecer da Professora Judith Martins Costa[2]
“Nesse sentido, creio que o autor da ação não pode, razoavelmente, sustentar que ‘não sabia’ que o cigarro fazia mal à saúde. É uma afirmação que não seria crível segundo os padrões de razoabilidade. Estar-se-ia afrontando a razoabilidade supor que o autor nunca leu, em nenhum jornal, a notícia dos danos à saúde provocados pelo fumo; que nunca tenha ouvido de parentes, amigos ou médicos, conselhos sobre o assunto; que nunca tenha participado de nenhuma roda social na qual se comentasse os malefícios do tabaco. Mas não é preciso enveredar pela argumentação ad absurdum: é o próprio autor a afirmar – segundo informa o laudo pericial – que, por diversas vezes, ‘desde a juventude’, fora advertido pelos médicos para parar de fumar.
(…)
Sendo fato notório e de pleno conhecimento público, não ocorre a funcionalidade que justifica a existência do dever de informar: a de suprir a ignorância acerca do risco, diminuindo a assimetria informativa e colaborando para a dação de um consentimento informado para a conclusão do contrato.”
Em tempos de informação em tempo real, com a internet, redes sociais, e demais meios de comunicação, não se faz crível que um passageiro, ao pretender realizar uma viagem, não faça uma pesquisa sobre a empresa que pretende contratar. Além disso, não pode uma agência de viagens ser obrigada a prestar informações, em caráter de suposição, sobre eventual risco de se contratar uma outra empresa. Se a ANAC, que é a agência regulatória responsável por fiscalizar o transporte aéreo, seguiu permitindo as operações da Avianca, como poderia a agência de viagens tomar uma atitude com base em possibilidades?
O que se vê, mais uma vez, é a excessiva proteção do consumidor, colocando-o em uma posição de vulnerabilidade absoluta, sem obrigação de tomar cautelas mínimas ao contratar um serviço ou adquirir um produto. A consequência é a oneração excessiva de empresas, o que é ainda mais severo para as empresas do setor de turismo, que foram tão afetadas pela pandemia.
Conclui-se, portanto, que o dever de informação consiste no fornecedor de um produto ou serviço disponibilizar todas as características do conteúdo de sua oferta, tal como previsto no artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor, já mencionado neste artigo. Por se tratar de passagem aérea, não há que se falar em qualquer sobre o risco à saúde e/ou segurança dos passageiros, mesmo estando a Avianca, á época dos fatos, em Recuperação Judicial. Veja, se a empresa estava tentando recuperar sua saúde financeira, e seguia operando conforme autorização da ANAC, não há argumento para basear a suspensão da venda de passagens, tampouco para que a agência de viagens tenha qualquer dever de informar algo que foi ostensivamente divulgado em todos os meios de comunicação.
[1]Art. 18. Para a execução do contrato de transporte, o passageiro deverá atender aos seguintes requisitos: I – apresentar-se para embarque munido de documento de identificação civil e em horário estabelecido pelo transportador; II – atender a todas as exigências relativas à execução do transporte, tais como a obtenção do visto correto de entrada, permanência, trânsito e certificados de vacinação exigidos pela legislação dos países de destino, escala e conexão;
[2]MARTINS-COSTA, Judith. Ação indenizatória: dever de informar do fabricante sobre os riscos do tabagismo: parecer. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 92, n. 812, p 75-99, jun. 2003.
Nicole Villa | Advogada de Di Ciero Advogados
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