O reembolso de bilhetes aéreos e a judicialização
É imprescindível a aplicação das normas específicas do transporte aéreo aos casos de reembolso
Ao adquirir um produto ou contratar um serviço, o consumidor manifesta sua vontade no sentido de firmar uma relação jurídica, vinculando-se com o escopo da contratação, assumindo direitos e obrigações. Quando se trata da contratação de um serviço de transporte aéreo, a maioria dos contratos é celebrada através do site das companhias aéreas ou agências de viagens. No entanto, caso o passageiro desista de viajar e queira solicitar o reembolso, quais são as medidas que precisa tomar para ser ressarcido e quais são os direitos e deveres das partes neste cenário? Seria cabível um pedido de indenização por danos morais caso o reembolso ocorra em valor diverso do pretendido pelo passageiro, ou em prazo superior ao previsto na regulamentação aplicável?
Inicialmente, vale ressaltar que no momento da oferta de passagem aérea, a empresa aérea tem a obrigação de oferecer ao menos uma opção de passagem aérea cuja multa pela remarcação ou reembolso seja de até 5% do valor total do bilhete, nos termos do artigo 3º da Resolução 400 da ANAC, que dispõe sobre as Condições Gerais do Transporte Aéreo. Vale destacar que essa previsão visa garantir que o passageiro tenha a opção de contratar o serviço que lhe permita obter o maior valor possível de reembolso.
Além disso, a companhia aérea tem como obrigação informar quais são as regras para remarcação e reembolso quando está oferecendo o serviço ao potencial passageiro, para que ele tenha ciência dos termos do contrato que está celebrando antes de conceder o aceite e pagar o valor pedido.
Caso o passageiro efetue a compra do bilhete, ele tem até 24 (vinte e quatro) horas contadas a partir do momento em que recebeu o comprovante de passagem, para desistir de utilizar a passagem, sem a cobrança de qualquer quantia para tanto. Essa regra só se aplica se a compra tiver sido realizada com antecedência de pelo menos 7 dias da data do voo.
“Resolução nº 400 da ANAC, Art. 11. O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento do seu comprovante. Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque”
No mais, as regras para reembolso de passagens aéreas estão previstas na Resolução 400 da ANAC, mais precisamente nos artigos 29 e seguintes. Referida norma estabelece o prazo de 7 dias para reembolso de bilhete aéreo, contados a partir da data da solicitação feita pelo passageiro, devendo ser observados os meios de pagamento utilizados na compra da passagem aérea.
A importância do tema foi reconhecida quando do advento da pandemia de covid-19, justificando um regramento específico, devido à excepcionalidade da situação, regramento este veiculado no artigo 3º da Lei 14.034/2020 (resultado da conversão da Medida Provisória nº925/2020). De modo geral, o aludido artigo 3º estabeleceu, dentre outras disposições, o prazo de 12 meses para que a companhia aérea efetuasse o reembolso, contados da data do voo cancelado em virtude da pandemia, sendo importante destacar que tal regramento especial vigorou até 31/12/2021, de modo que, a partir de então, foi reestabelecida a disciplina acima exposta apoiada na Resolução 400/2016 da ANAC.
Aqui vale ressaltar que, como a esmagadora maioria dos bilhetes aéreos é paga com cartão de crédito e a companhia aérea não possui ingerência sob os atos da administradora do cartão, a ANAC esclareceu, por meio de nota técnica, que o prazo de 7 dias é apenas para os casos de compra de bilhete em dinheiro, sendo que nas demais hipóteses os 7 dias seriam o tempo para que a empresa tome todas as medidas a seu alcance, para solicitar o reembolso ao agente de viagens e/ou solicitar o reembolso à administradora do cartão de crédito utilizado pelo passageiro.
Além disso, o reembolso será integral nos casos de atraso, cancelamento de voo, overbooking ou interrupção de serviço, caso a solicitação seja feita no aeroporto de origem, de escala ou conexão. Deverá ser proporcional ao trecho não utilizado, se o deslocamento já realizado puder ser utilizado pelo passageiro.
Há ainda a possibilidade de reembolso por crédito (também chamado de vouchers) para a aquisição de passagem aérea, mediante concordância do passageiro.
Ao analisar a norma regulatória pertinente ao tema, é possível constatar que não há qualquer previsão de quais canais devem ser disponibilizados para que o passageiro possa solicitar o reembolso. Há apenas a previsão de que deve ser acessível e os contatos amplamente divulgados.
Ainda assim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar e julgar o Recurso Especial nº 1.966.032, o que foi feito pela Quarta Turma, entendeu que, quando a compra das passagens tiver sido feita pela internet, a empresa também deve oferecer/apresentar um canal eletrônico para solicitação de reembolso, sendo excessivamente oneroso ao consumidor a exigência de contato telefônico com a central de atendimento da empresa para tanto. Além disso, tal conduta foi “considerada como abusiva pelo Parquet estadual, nos termos do art. 39, inciso V, do CDC, na medida em que dificultava sobremaneira o cancelamento e o reembolso dos pontos utilizados.”
A respeito do assunto, é importante contextualizar e ressaltar que, uma vez mais, é comum que o judiciário brasileiro, ao apreciar questões nas quais se discutam os direitos do consumidor, tenha uma tendência em compreender e aplicar os conceitos de hipossuficiência e abusividade, por exemplo, para além dos limites legais e teóricos, implicando, como consequência, em presunções que redundam em desvirtuar o alcance e sentido dos direitos do consumidor, prática esta que, ao fim e ao cabo, acarretará prejuízos ao próprio consumidor e ao mercado.
No caso em tela, por exemplo, não houve infração legal ou regulatória por parte da empresa aérea envolvida no caso, tampouco de qualquer outro órgão de proteção ao consumidor. O fato de a empresa efetuar a venda de passagens aéreas pela internet e estabelecer que as solicitações de cancelamento, remarcação ou reembolso sejam feitas por telefone ou presencialmente está longe de se configurar como prática abusiva, pois não torna o serviço inacessível ao passageiro, tampouco lesa qualquer lei ou regulamento aplicável à relação jurídica em discussão, uma vez que não há previsão legal no sentido da decisão proferida.
Desta forma, ainda que seja respeitável a análise feita no caso em discussão e que outras empresas aéreas já tenham esse tipo de serviço no que diz respeito ao reembolso, a conclusão extrapola à lei e os regulamentos específicos do setor aéreo, limites fundamentais para o exercício legítimo do poder punitivo, evitando-se a insegurança jurídica tão prejudicial aos negócios.
Há ainda a questão do dano moral em processos movidos por passageiros em face de companhias aéreas, cujo objeto seja reembolso. Infelizmente, é comum que os passageiros, ao levar ao judiciário lides envolvendo a demora na realização do reembolso, sua ausência ou a discordância do valor recebido, não se atenham a pedir somente danos materiais, mas também danos morais.
É sabido que o Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei nº 7.565/1986 (art. 251-A), determina que a indenização por dano moral, em virtude de defeito na prestação do serviço de transporte aéreo, só seja arbitrada caso haja comprovação de prejuízos desta natureza sofridos pelo passageiro.
Código Brasileiro de Aeronáutica, Art. 251-A. A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.
Além disso, já há consolidada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o simples inadimplemento contratual, por si só, não é causa para dano moral, pois que os efeitos de tal ilícito são resolvidos, ordinariamente, em perdas e danos materiais.
Ou seja, só há que se falar em dano moral ocorrido em virtude de uma falha na prestação de serviço de transporte aéreo quando houver a comprovação de que realmente foi causado prejuízo ao passageiro por ação ou omissão da companhia aérea, não sendo mais aplicável o entendimento de dano presumido, o que vinha sendo adotado pelo Poder Judiciário até 2020, ocasião na qual o artigo 251-A do Código Brasileiro de Aeronáutica entrou em vigor.
No nosso ponto de vista, no caso de processos envolvendo reembolso, é ainda mais surpreendente, por descabido, o pedido de dano moral. Isso porque, ainda que tenha ocorrido o descumprimento do prazo pela empresa aérea, ou que o passageiro discorde do valor, não há plausibilidade ou verossimilhança, em regra, para que tal fato venha a macular a honra, ou os direitos da personalidade do passageiro. Há ai, segundo nosso entendimento, claro desvirtuamento do conceito jurídico de dano moral indenizável.
Ou seja, ainda que a jurisprudência ainda esteja em fase de adequação às novas regras (em vigor há mais de 2 anos, pelo menos), certo é que a regulamentação e lei aplicáveis às relações do contrato de transporte aéreo de passageiro não permitem a indenização por danos morais sem comprovação, o que não é possível constatar em questões de demora, discordância do valor ou até ausência de devolução do dinheiro por parte da empresa aérea.
Desta forma, uma vez mais se ressalta que, dada a importância da indústria aeronáutica para a economia mundial e nacional, é essencial que o Judiciário se prepare para analisar questões de Direito Aeronáutico, entenda a importância de se aplicar as leis especiais em detrimento de leis gerais, e no que tange aos pedidos de indenização por danos morais em processos discutindo reembolso de passagem aérea, só caberá indenização na hipótese de comprovação efetiva de prejuízo de tal natureza causado pela companhia aérea ao passageiro.
Fonte: JOTA
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