Por que a lei penaliza o importador por um erro do transportador?
As hipóteses de aplicação da pena de perdimento de mercadoria estão previstas no art. 689 do Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009).
Neste artigo, pretendemos tecer algumas considerações sobre a forma que vem sendo aplicada tal penalidade às mercadorias existentes a bordo do veículo, sem registro em manifesto, com fulcro no inciso IV do já mencionado art. 689:
“Art. 689. Aplica-se a pena de perdimento da mercadoria nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário (decreto-lei nº 37, de 1966, art. 105; e decreto-lei nº 1.455, de 1976, art. 23, caput e § 1º, este com a redação dada pela lei no 10.637, de 2002, art. 59):
(…)
IV – existente a bordo do veículo, sem registro em manifesto, em documento de efeito equivalente ou em outras declarações;”
O primeiro ponto a se destacar é que o manifesto de carga é documento emitido pelo transportador para informar as mercadorias procedentes do exterior por ele transportadas a bordo de seu veículo, no caso das empresas aéreas, naquele específico voo.
O importador, verdadeiro proprietário dessa mercadoria transportada, que cumpriu com o seu dever legal e entregou a carga para embarque acompanhada da competente documentação fiscal, não tem qualquer ingerência sobre este ato e seu cumprimento.
Mesmo assim a penalidade por descumprir a obrigação de informar a mercadoria em manifesto recai sobre a própria mercadoria e não sobre quem efetivamente descumpriu a obrigação.
Há 20 anos atuando na área do direito aduaneiro, perguntamo-nos por que o legislador optou por penalizar o importador, privá-lo de sua mercadoria, por um erro do transportador?
Imaginamos que o legislador estivesse prevendo a situação de uma mercadoria que nenhuma identificação continha, para a qual nenhum documento existisse, mas que foi encontrada a bordo do veículo. Não há proprietário, não há interessados, não há identificação alguma; mas está lá, a bordo da aeronave… o que fazer, que destinação lhe atribuir?
Estivéssemos tratando da hipótese que, supomos, foi a vislumbrada pelo legislador, isto é, não havendo registro no manifesto de carga ou em documento de efeito equivalente ou, ainda, em outras declarações, seria natural que o Fisco apreendesse essa mercadoria encontrada a bordo por vislumbrar intenção de dolo, de entrada de mercadoria em território nacional de forma oculta, a configurar a prática dos crimes de contrabando e descaminho.
Entretanto, no mundo real, os casos concretos revelam que, embora sem registro em manifesto, essas mercadorias estão identificadas e inúmeros atos foram praticados pelas partes interessadas, assim como documentos emitidos, muito antes de seu embarque, a caracterizar a completa ausência de intuito de clandestinidade.
Nas dinâmicas operações das empresas de transporte aéreo, por exemplo, sobretudo quando estamos tratando de mercadorias transportadas nos porões das aeronaves de passageiros, onde, além das cargas, bagagens estão disputando espaço, um número relevante de mercadorias pode chegar sem registro em manifesto. As razões operacionais para essas ocorrências podem ser diversas, mas a necessidade de balanceamento da aeronave quase sempre é o que leva a um corte ou à inclusão de uma carga não programada para determinado voo.
Não se deve olvidar que estamos tratando de operações de comércio exterior, sendo o transporte uma parte desta operaçãopara que a mercadoria possa chegar a seu destino. Estão envolvidos exportadores, importadores, agentes de cargas, depositários e as próprias alfândegas do local de embarque.
Exatamente por esta razão é que o art. 48 do Regulamento Aduaneiro previu a possibilidade de ser suprida a omissão de volume em manifesto de carga, se objeto de conhecimento regularmente emitido, mediante a apresentação da mercadoria sob declaração escrita do responsável pelo veículo, anteriormente ao conhecimento da irregularidade pela autoridade aduaneira.
Desta forma, ao verificar uma situação como esta, o transportador, então, busca a informação acerca da mercadoria, apresenta a documentação que já existia antes mesmo do embarque da carga, solicitando a apropriação do conhecimento de transporte ao DSIC, para possibilitar a continuidade do despacho aduaneiro de importação pelo importador.
Este procedimento é tão comum que algumas Alfândegas, como a do aeroporto de GRU, criaram procedimentos para agilizar a apropriação do DSIC. É o que se infere de Comunicado expedido em 15.10.2020 pelo Delegado da Alfândega de GRU.
Apesar de todo este arcabouço, alguns fiscais de algumas Alfândegas, em procedimentos de fiscalização de pista, acabam por tomar conhecimento da existência de mercadorias não manifestadas no mesmo momento em que o próprio transportador e, consequentemente, procedem com a apreensão da mercadoria para aplicação da pena de perdimento, não permitindo ao transportador a regularização da mercadoria não manifestada, sob o argumento de que essa regularização deve ocorrer anteriormente ao conhecimento da irregularidade pela autoridade aduaneira.
Ou seja, mesmo que exista para essa mercadoria vasta comprovação de sua regular importação, com emissão de conhecimento de carga em momento anterior ao embarque, fatura comercial, contratos e mensagens entre os envolvidos naquela operação de importação, que corroboram sua boa-fé, ainda assim existem auditores fiscais que insistem em ignorar o conjunto probatório para, de forma desarrazoada, manterem a pena de perdimento, em verdadeira violação ao direito de propriedade do conhecido importador.
Todos os dias centenas de cargas chegam aos aeroportos do País e são recebidas pelos depositários nos terminais de carga, entregues pelos representantes das empresas aéreas, e têm sua situação sanada, porque o art. 48 do Regulamento Aduaneiro permite essa regularização.
Entretanto, em alguns casos, não é dada a possibilidade ao transportador de conhecer seu erro e corrigi-lo antes do conhecimento da irregularidade pela autoridade aduaneira, porque feita a chamada “fiscalização de pista”.
Essa iniquidade da norma precisa ser corrigida pelo legislador e pelo Poder Judiciário que, infelizmente, vem julgando as ações que lhe são submetidas de forma contrária ao transportador e, pasme-se, ao importador, que nada tem a ver com o descumprimento da obrigação imposta ao transportador.
Também a autoridade aduaneira não pode fechar os olhos para a documentação que comprova a boa-fé na importação e transporte da mercadoria, pelo simples fato de que conheceu a irregularidade antes da tentativa de correção.
O que se deduz dessa presunção absoluta de dano ao Erário, e onde não se está admitindo comprovação contrária, é que todos são culpados.
Equivale a dizer que existe dolo e dano ao Erário apenas se há fiscalização de pista, porque, em todos os demais casos, é possível corrigir a ausência de informação em manifesto e isso é feito todos os dias Brasil afora – e no mundo.
Não pode ser o momento da fiscalização que vá ditar o dolo do agente, mas todo o contexto probatório que é apresentado quando se busca a regularização da carga, porque o processo administrativo deve pautar-se pelo princípio da verdade material.
Manter a pena de perdimento é violar o direito de propriedade daqueles que, de boa-fé, contrataram o frete aéreo.
Por quanto tempo mais teremos uma norma ilegal e um Poder Judiciário ratificando tamanha iniquidade, em que o importador (conhecido) é privado de sua mercadoria (identificada), em razão do descumprimento, pelo transportador, de sua obrigação de registrar as cargas transportadas em manifesto?
Espera-se que o entendimento já manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema volte a ser proclamado, afastando-se a severa pena de perdimento da mercadoria, quando restar comprovada a absoluta ausência de dolo na conduta dos envolvidos e a regularidade da importação da mercadoria, ainda que a autoridade aduaneira possa ter conhecido a infração praticada pelo transportador antes da tentativa de regularização.
Luisa Medina | Sócia de Di Ciero Advogados
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